Introdução

Há muito medo e pouca compreensão ao redor da palavra inflação. É preciso entender a inflação como um fenômeno do nosso dia a dia, algo cotidiano e mundano, e não um monstro esperando para sair do armário (apesar dela muitas vezes se manifestar como monstro graças a nossos governos que fazem de tudo para escondê-la sempre que possível).

A inflação será parte de nossas vidas hoje e sempre. É algo natural do dinheiro, tal qual uma febre é natural do corpo humano ou a chuva é natural do clima. E tal qual a febre ou a chuva, a inflação pode ser boa ou ruim. Mais importante ainda: se corretamente compreendida, podemos nos planejar para conviver com a inflação sem que ela se torne um peso desnecessário em nossas vidas.

O desafio

A dificuldade na compreensão da inflação provém da nossa dificuldade como seres humanos de avaliar eventos que não apresentem uma relação de causa e consequência direta. E a inflação é um fenômeno que está sempre em curso, mas cujos efeitos as vezes demoram anos a materializar a partir de seus fatos causadores.

Você joga uma pedra numa vidraça, e é claro como o dia que a vidraça quebrou por conta da pedra.

Mas se hoje o governo distribuir cheques de R$ 1 milhão para toda a população, e todos resolverem guardar o cheque debaixo do colchão, não haverá inflação alguma. Se daqui há 4 anos começarmos a gastar os cheques, certamente teremos alguma inflação – mas até lá, já passamos por alguma crise ou boom de crescimento, mudamos de presidente, política econômica, tivemos secas e quebras de safra, o mundo entrou em algum conflito geopolítico, uma pandemia se espalhou, etc… Como dizer que a inflação gerada depois de tudo isso é fruto dos cheques de 4 anos atrás?

Temos hoje um ótimo exemplo: a crise de energia elétrica vem se materializando e afetando nossas métricas de inflação, mas ela não é resultado da pandemia ou de nenhum evento pontual recente. É uma crise que vem sendo fabricada há anos, com constante redução de reservatórios sem que se endereçasse o problema com investimentos, aumento de contas de luz, etc. Em outras palavras, escondemos inflação no passado e agora ela se manifesta no presente.

Como separar, na inflação de hoje, o que é efeito da pandemia, o que é efeito da crise de energia, e o que é efeito de políticas expansionistas do banco central americano que já duram uma década, dentre N outros fatores?

 

O desafio, parte 2 – Nossa aversão a perdas, ancoragem e a dificuldade de raciocinar no relativo

Este trecho é um grande balaio de vieses comportamentais que se misturam.

Passamos nossas vidas ganhando mais de 1% ao mês na renda fixa e nos ancoramos neste número. Quando a renda fixa passou a pagar 0,5% ao mês, ninguém ficou feliz.

Tem mais: em alguns momentos, o 1% ao mês empatava com a inflação, enquanto o 0,5% ao mês estava acima da inflação, o que significa que nosso ganho real era maior no segundo caso. Mas quem tem boas memórias do período de juros baixos? E quem ainda tem aquela nostalgia dos dias de 1% ao mês?

Também é mais cansativo raciocinar no relativo. Algo que rende 10% ao ano exige uma operação mental apenas, enquanto outro ativo que renda 115% do CDI ou IPCA+5% exige mais de uma operação para chegar ao rendimento final.

10% ao ano é simples – quanto de ganho real obtive nestes 10% é mais complicado.

A inflação torna nosso mundo menos determinístico à primeira vista, e nos demanda este esforço constante de relativizar o que vemos.

Por fim, como seres humanos preferimos números positivos (que é uma manifestação da aversão a perdas). É melhor ter rentabilidade de 10% com inflação de 10%, ou ter rentabilidade de -10% com inflação de -10%? (no segundo caso, deflação)

É melhor ver seu R$ 1.000.000,00 virar R$ 1.100.000,00 ou R$ 900.000,00, ainda que ambos os resultados tenham o mesmo poder de compra ao fim do processo?

Números sempre crescentes sugerem progresso e evolução, e somos presas fáceis para esta armadilha cognitiva da aparência de crescimento.

 

O que os olhos não veem, o coração não sente

Este é o princípio básico que rege a (discutível) utilidade da inflação. Como somos incapazes de monitorar o impacto da inflação sobre nosso patrimônio no decorrer do tempo, a inflação se torna uma ótima ferramenta para corrigir desvios sem que se gerem picos de insatisfação social.

Você provavelmente está discordando de mim neste momento, pensando “É claro que percebo a inflação, a gasolina passou dos R$ 7,00 por litro e o supermercado ficou muito mais caro”.

Sim, nós percebemos flutuações imediatas de preço, pois são relações de causa e consequência diretas – sobe o preço, dói no seu bolso. Mas as reais perguntas a se fazer são:

– Estou mais rico hoje do que há 5 anos atrás, em termos de poder de compra? Quanto a mais meu aumento de salário me permite comprar de lá pra cá?

– Meu imóvel vale o mesmo que valia 10 anos atrás?

Em horizontes mais longos de tempo as respostas são menos claras. E se são menos claras sofremos menos, porque nominalmente o valor de tudo subiu e isto nos conforta, ainda que não signifique que tivemos no relativo ganhos acima da inflação.

A utilidade da inflação: o copo meio cheio

Chegamos à parte mais interessante. A inflação nada mais é do que a socialização forçada dos prejuízos de um país. Ninguém escapa, do rico ao pobre. É o único imposto insonegável.

Quando perdemos poder de compra para a inflação, ficamos todos mais pobres em conjunto. Não percebemos de imediato, mas ficamos.

A inflação decorre de políticas monetárias expansionistas do governo, que injetam dinheiro na economia buscando fomentar crescimento ou evitar crises. Utilizemos a pandemia como exemplo.

Com a interrupção da economia em março de 2020, os governos tinham duas saídas: deixar uma crise se instalar, ou imprimir dinheiro para manter a economia girando. Em outras palavras, ou deixávamos a economia contrair 10% e todos nós estaríamos 10% mais pobres, ou imprimíamos dinheiro de modo que a economia continuasse funcionando e todos mantivessem seu patrimônio intacto, ainda que após a inflação todos teremos uma perda de 10% relativa.

Lembram da nossa aversão a perdas? Deixar a economia contrair 10%, jamais! É melhor imprimir dinheiro para que a economia se mantenha estável e cresça 0% com inflação de 10%, ainda que após inflação a perda seja a mesma.

Economicamente, o resultado final é o mesmo, pois não se imprime riqueza. Não há mágica. Mas nossa percepção muda da água pro vinho. Ao invés de quebradeira, demissões em massa, queda no preço de ativos, etc, passamos de forma muito mais suave pelo olho do furacão.

A contrapartida? Alongamos o tempo necessário para o retorno à normalidade. Compramos menos turbulência no presente em troca de mais bagunça no futuro.

Ao adotar o caminho da inflação, o governo confisca indiretamente uma pequena parte do patrimônio de todos os cidadãos e empresas para combater a crise que se apresenta. A alternativa seria deixar a crise correr seu curso e impactar diferentes setores de maneiras diferentes, o que significaria grandes vencedores e grandes perdedores – e isto teria potencial de gerar enorme inquietação social.

Não menos importante, certos setores simplesmente não podem ser abandonados à lei do mercado, dada nossa dependência dos mesmos. O exemplo mais óbvio é o caso das cias aéreas: se deixássemos todas quebrarem, o que claramente deveria ter acontecido, como retomaríamos à vida normal no pós-pandemia sem aviões?

 

A utilidade da inflação: o copo meio vazio

Seria lindo se fosse tão simples como o descrito acima. Mas quem nos garante que ao imprimir dinheiro e suavizar a passagem pela crise, não estamos criando outros vencedores e perdedores de maneira artificial?

Que fim terão os negócios que cresceram em ritmo mais conservador evitando dívidas, justamente para se prevenir de momentos como estes? Como ficam quando a crise chega e os concorrentes agressivos não quebram – pelo contrário, são salvos com o dinheiro de todos nós?

Do lado das pessoas físicas, os resultados da inflação também são extremamente variados. Para quem vive na base do salário-mínimo, um aumento de 50% em alimentos é fatal. Para quem gasta apenas 10% do salário com alimentação, o aumento é meramente uma tecnicalidade.

Ainda, quanto menos dinheiro possui um indivíduo, menos acesso ele tem a ferramentas que protejam seu pouco patrimônio acumulado da inflação. A poupança que o diga – é o maior crime financeiro contra o pequeno poupador. Não só ele perde da inflação de maneira constante, como ainda ajuda a financiar o imóvel de seu chefe na classe média a juros camaradas (é pra morrer, não é?).

O investidor endinheirado tem acesso a veículos mais sofisticados de investimento, pode dolarizar parte do seu patrimônio e evitar parte destes efeitos.

No combinado de todos seus efeitos, será que o caminho da inflação é realmente o melhor? Confiscamos parte do dinheiro de ricos e pobres sim, mas em que proporção? Qual o impacto relativo para cada um?

Na dúvida…

Não temos respostas fáceis para as questões acima, mas há uma conclusão fácil de atingir: a cada 4 anos temos eleições, e governante nenhum pode se dar ao luxo de uma economia sofrendo grandes impactos – sejam estes reais ou efeitos de nossa percepção enviesada como já discutimos.

Na dúvida, manda ligar as impressoras.

 

O risco maior da inflação: o descontrole e a retroalimentação

Até agora tratamos inflação como este animal quase domesticável. Mas não é tão simples assim.

Num ambiente de inflação, preços começam a subir de todos os lados, e aos poucos instala-se a sensação de perda do valor do dinheiro e de escassez. Quem vem primeiro depende da natureza do impacto inflacionário.

Usemos esta crise como exemplo: a interrupção nas cadeias de logística e oferta de insumos causou gargalos de produção que tem levado à escassez de produtos.

À medida que se instala a escassez, preços começam a subir por força da falta de oferta. No que preços passam a subir com constância, você naturalmente se sente inclinado a antecipar compras e estocar produtos para garantir preços menores, imbuído da sensação de que no futuro os preços tendem a continuar subindo. E isto pressiona preços ainda mais.

Com a escassez, outro comportamento passa a ser adotado: o de encomendar mais que o necessário, com receio de que não se receba o que se precisa. Isto infla artificialmente a demanda e também pressiona preços. Se todos acham que vão pedir 10 toneladas de madeira mas apenas receberão 5 toneladas, todos passarão a encomendar 20 toneladas – num passe de mágica, criamos o dobro de demanda. E a demanda artificial também pode resultar em ainda mais demanda por conta de uma eterna oferta aquém do esperado.

Por fim, se compramos coisas para estocar, além de inflar a demanda estamos todos contribuindo para a redução da oferta também, pois se o preço das coisas vai subir nossa intenção é comprá-las para não vender, retirando-as do mercado por tempo indeterminado.

Este é o “juros” que a saída fácil através da impressão de dinheiro cobra. Um potencial desarranjo econômico que tem capacidade de tornar a desejada recuperação econômica um processo mais caótico que o próprio choque inicial que quisemos minimizar.

 

Então se na inflação o preço de todas as coisas sobe…

Sim, estamos chegando lá… Se com a inflação, e com estes desequilíbrios que descrevemos, o dinheiro perde valor enquanto o preço de todas as coisas sobe, a saída só pode ser…. comprar coisas!

Na teoria é exatamente isto – e é exatamente isto que temos observado, não é verdade? Comida ficou mais cara, petróleo ficou mais caro, minério de ferro ficou mais caro… até o preço de carros usados subiu!

Você como investidor vai querer comprar coisas para investir seu dinheiro e vai contribuir ainda mais para a inflação. Se a tendência é o arroz continuar subindo, porque não estocar arroz para vender daqui 6 ou 12 meses?

No mercado financeiro, chamamos coisas de commodities.

Eis o único problema: ter commodities não é tão fácil quanto ter um CDB ou uma ação. Commodities exigem manutenção, custos de armazenagem, parte delas é perecível, etc…

Comprar petróleo ou soja para guardar requer custos de armazenagem – e a soja ainda pode estragar no processo. Comprar carros antigos requer parte dos custos anteriores, mais o custo de manutenção. Comprar ouro físico requer custos de armazenagem e segurança. E por aí vai.

Quando compramos coisas, a expectativa de sua valorização tem que justificar os custos envolvidos enquanto aguardamos a valorização, e os riscos de tal operação. E esta conta claramente não é simples de fazer – nem quanto vai valorizar de fato nossa coisa, nem quanto serão todos os custos envolvidos, nem a quais riscos estamos realmente sujeitos.

E é óbvio que essa história termina sempre com alguém entupido de alguma coisa que perdeu valor, não tem mais tanto comprador, e ainda gera todos os custos citados acima.

(e isso tudo vale para imóveis de certa maneira, mas esse tópico mereceria um texto a parte)

 

Shadow Inflation (ou inflação camuflada)

Outro aspecto interessante a se observar é a inflação camuflada: ela é o aumento de preços que você não vê, por exemplo através da redução na qualidade de serviços que você consome.

Há exemplos de efeitos mais mundanos, como o atendimento no restaurante que demora mais, porque ele agora tem menos funcionários; ou o hotel que não oferece mais um café da manhã tão farto e a frequência da limpeza de quartos é menor.

Mais preocupante e difícil de perceber, no entanto, podem ser coisas como a redução no controle de qualidade em processos produtivos, ou o uso de insumos de menor qualidade. Será que seu carro e os alimentos que consome seguem passando por exatamente o mesmo processo de produção? Os materiais são ainda da melhor qualidade? Os agrotóxicos são ainda os menos nocivos?

Na pressão por manter margens, algumas indústrias tem menos poder de precificação que outras. Aqui na vida real, todas vão buscar se manter rentáveis de uma maneira ou de outra, ainda que o mundo mágico do dinheiro infinito nos seduza a crer que tudo se resolve com banqueiros centrais atirando amor e dinheiro sobre todos nós como verdadeiros ursinhos carinhosos.

 

 

Considerações finais

Bom, se a inflação é este processo que acontece ao longo do tempo, de natureza incerta, difícil de prever quando se materializará e quando deixará de ser um problema, como fazer para encará-la da melhor maneira possível?

Não pretendemos ter as respostas exatas pois achamos que não existem, mas entendemos que há maneiras de conviver com este processo que simplificam nossa interação com a inflação.

A primeira parte é reconhecer parte da natureza do problema: se a inflação acontece descasada de seus efeitos causadores, então é razoável concluir que antes da inflação se manifestar estamos sempre mais ricos do que realmente somos, graças a algum efeito monetário artificial.

E se estamos mais ricos do que deveríamos estar coletivamente, a inflação é apenas a correção deste efeito. Destaque também ao “coletivamente” – somos todos afetados por esse processo, ninguém escapa ileso.

Isto muda da água para o vinho como percebemos a materialização da inflação. Ela não vem para nos tornar mais pobres seletivamente, mas sim para “confiscar” de todos o excesso de riqueza que foi fabricado artificialmente em algum momento no tempo. Não estamos perdendo nada que não tenhamos ganhado “indevidamente”. Não deveria haver “dor de perda” se o que ganhamos era dinheiro de banco imobiliário – ele nunca valeu nada em primeiro lugar.

No presente caso, fabricamos riqueza artificial durante a pandemia para evitar um colapso ainda maior das economias, e agora a inflação vem para remover essa falsa-riqueza em doses homeopáticas, espaçando a dor da perda ao longo de meses ou anos, e tornando portanto a dor suportável.

A segunda parte envolve reconhecer que, como todo outro processo que traz elevada incerteza para nossa equação patrimonial, é preciso tratar a inflação com cautela e evitar grandes tacadas e exposições na esperança de acertar a classe de ativos que melhor desempenhará no futuro.

Grandes erros acontecem em grandes tacadas.

Jamais teremos a alocação perfeita, jamais surfaremos todo o ganho que a inflação proporciona e evitaremos todo o “confisco” de valor que ocorre na sequência.

A terceira parte é, para os que ainda estão economicamente ativos, se assegurar de que nos mantemos relevantes, atualizados e necessários à sociedade – seja como empresas ou como funcionários. Enquanto nos mantivermos úteis, teremos capacidade de reajustar nossas receitas pela inflação (ao menos parcialmente), e continuar construindo riqueza mesmo enquanto nossa “base de riqueza” se altera.

Não só isto, mas o foco em geração de riqueza através do trabalho tem potencial muito mais exponencial do que a geração de riqueza de forma passiva através de investimentos.

No fim das contas, evitar cometer grandes erros e se manter capaz de continuar gerando riqueza são nossas melhores defesas contra períodos inflacionários, pois são os dois aspectos que estão mais sob nosso controle e que garantem, até um certo ponto, que nosso patrimônio e padrão de vida acompanhem o deslocamento de preços.

Mais do que isto, esse foco nos permite centrar esforços em aspectos palpáveis do nosso dia a dia, o que aumenta marginalmente o conforto psicológico que teremos ao atravessar a turbulência. A alternativa é nos deixar levar pela algazarra das notícias e pela sensação de falta de controle que isso gera. Nada de bom há de resultar de passarmos todos os dias apreensivos com o futuro, e nos sentindo na obrigação de fazer alguma grande movimentação.

Se a inflação é inevitável e natural ao dinheiro, que aprendamos a conviver com ela na melhor de nossas capacidades. Há vida para além do IPCA e do mercado financeiro.

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